Uma pesquisadora determinada que conseguiu diagnosticar a principal doença da produção de laranja do país. E que, além disso, ajudou a colocar uma pesquisa brasileira na capa da principal publicação científica do mundo pela primeira vez em 130 anos ao estudar outra grande praga da cultura.


Dentro do laboratório, Diva do Carmo Teixeira, que morreu no ano passado, conseguiu fazer a diferença na sexta principal atividade agrícola do Brasil. A produção de laranja no país movimentou R$ 14,3 bilhões em 2019, segundo o Ministério da Agricultura.


A pesquisa foi e é fundamental para a modernização e competitividade do agronegócio brasileiro. Desde a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na década de 1970, o Brasil passou de comprador para o maior exportador mundial de alimentos.


Um desses exemplos ocorre na produção de laranja, que é muito concentrada no Sudeste do país, principalmente nos estados de São Paulo e Minas Gerais.


Nessa região, produtores, indústrias e pesquisadores uniram força e conhecimento para enfrentar os desafios da atividade. Neste sentido, em 1977, foi criado o Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus).


Duas décadas depois, em 1997, o Fundecitrus se estruturou para ter um centro de pesquisa próprio. Foi neste ano em que Diva chegou à instituição, sendo a primeira pesquisadora do laboratório. De perfil calmo e muito focada, ela agradou logo de início.


“Foi uma das primeiras que a gente contratou e foi uma quebra, digamos, de protocolo. Ela não era agrônoma, era farmacêutica, mas ela foi se destacando na área, fez mestrado e doutorado dentro da nossa instituição”, explica Juliano Ayres, gerente-geral do Fundecitrus.


Naquela época, o fundo contratou o pesquisador francês Joseph Marie Bové, um dos principais nomes da citricultura no mundo, para montar o laboratório com Diva, então com 31 anos, e outros pesquisadores.


A chegada dele ao Brasil ocorreu em um momento em que a produção de laranja do país enfrentava a clorose variegada dos citrus (CVC), conhecida como “amarelinho”, uma doença que diminui – e muito – a produtividade da planta.


“Na época, não tinha como cultivar a bactéria da CVC em laboratório, não se conhecia como era transmitida a doença.... imagina para uma jovem chegar em uma pressão dessas?”, lembra Ayres.

Bové decidiu, então, que a equipe precisaria ser treinada no Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola (Inra), de Bourdeaux (França), que já estudava a doença há algum tempo.


“O Bové nos disse que só uma (pesquisadora) dava para ser treinada por eles: a Diva. Ele dizia que ela era determinada e falou ‘em 3 meses a gente vê se vai dar certo, senão ela volta’, só que ela ficou muito mais do que isso”, afirma o gerente-geral do Fundecitrus.


Capa da 'Nature'

Também em 1997, o Fundecitrus firmou uma parceria com pesquisadores do Fundo de Amparo a Pesquisa de São Paulo (Fapesp) para realizar o maior projeto científico já feito no país até então: o sequenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa, a causadora da CVC. Um investimento de cerca de US$ 15 milhões.



Bové e a colega Monique Garnier, ambos pesquisadores do Inra, haviam descoberto poucos anos antes que essa bactéria é responsável pela doença. Então, eles ajudaram no estudo brasileiro fornecendo clones da Xylella fastidiosa, muitos deles oriundos do trabalho de Diva.


“Ela já trabalhava com essa bactéria e boa parte das bactérias (utilizadas no Projeto Genoma) vieram dos estudos da Diva… foi um feito importante da ciência brasileira”, explica Nelson Wulff, pesquisador do Fundecitrus.


A pesquisa do Projeto Genoma, que envolveu Fapesp, Fundecitrus e mais de 190 pesquisadores, demorou 26 meses para ficar pronta, de novembro de 1997 até janeiro de 2000.


No dia 13 de julho daquele ano, a revista científica "Nature" publicou em sua capa o estudo brasileiro, sendo a primeira pesquisa do Brasil a conseguir esse tipo de destaque em mais de 130 anos da publicação. Foi também o primeiro sequenciamento genético feito fora do eixo Europa-Estados Unidos.


A CVC é uma doença sem cura conhecida até o momento, mas todo o conhecimento desenvolvido foi utilizado em medidas de controle. Hoje, por exemplo, já se sabe quais são as estratégias para evitar o surgimento dela, como a eliminação da planta e compra de mudas menos suscetíveis à doença.


A CVC que, no auge, chegou atingir mais de 40% das plantas da principal área produtora de laranja do país, alcança hoje cerca de 1% das árvores.


Diagnóstico inédito

Se a CVC começava a ser superada, uma outra doença chegou alguns anos depois para afetar o trabalho dos produtores rurais: o greening, também chamado de "amarelão". O problema é que ninguém tinha certeza de que se tratava mesmo dele.


O greening foi descoberto na África do Sul, é uma doença que deixa as folhas amareladas e que diminui o vigor da planta, tornando-a menos produtiva e gerando frutos menores. Com isso, a árvore pode deixar de produzir quase 70% do que poderia.


m 2004, alguns pomares brasileiros começaram a apresentar características da doença, porém, nenhum teste confirmava de que havia a presença do greening.


“Quando você tem uma doença nova, em que não se conhece praticamente nada, existia um temor muito grande. Igual no início da pandemia do coronavírus, em que não se tinha a confirmação da doença... gera apreensão”, explica Wulff.

Diante da dificuldade, Diva conseguiu amostras das bactérias responsáveis pela doença até então desconhecida e voltou à França para investigar o problema.


“Nisso, acharam uma nova espécie de bactéria do greening, confirmando o primeiro relato dessa doença no Brasil e no continente americano.”


Graças ao estudo, foi possível desenvolver um teste para que se pudesse pensar em medidas de controle. “Em 90 dias pesquisa, a Diva localizou a bactéria nova e constatou que ela estava presente em 99% das plantas. Através da persistência, a Diva conseguiu um feito”, diz Juliano Ayres.


O trabalho foi tão marcante que virou tese de mestrado. O resultado foi fundamental para diagnóstico e controle do greening no Brasil. Foi possível entender qual era o agente transmissor e como a bactéria se comportava.


O greening também é uma doença sem cura, mas o diagnóstico ajudou a evitar prejuízos. A recomendação é de que os produtores eliminem as plantas doentes.


Hoje já existem estudos para controle biológico do inseto que transporta a doença, o psilídeo. Pesquisadores do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) descobriram que uma vespa é predadora natural do psilídeo, sendo uma alternativa de prevenção ao greening.


Em 16 anos, a doença foi responsável pela eliminação de mais de 55,5 milhões de árvores de laranja em São Paulo e Minas Gerais. Isso corresponde a quase um quarto do que existe na região atualmente.


O greening chegou a atingir mais de 40% das árvores do cinturão citrícola do país e, atualmente, está presente em 20% das plantas. Continua sendo uma grande preocupação da atividade.


Legado

Ainda tentando buscar uma solução definitiva para o greening, em 2012, Diva foi para uma missão na Flórida, nos Estados Unidos, outro grande produtor mundial de suco de laranja. O objetivo foi pesquisar um jeito de acabar com a doença de vez.


Por 4 anos, ela estudou um vírus (CTV), que está presente nas plantas brasileiras desde a década de 1940 e que pode ser uma arma natural para combater o greening.


A ideia é de que o vírus ataque a bactéria causadora do greening logo no começo, fazendo com que a planta nem chegue a ser contaminada pela doença.


Porém, no começo, as coisas não saíram como planejado. O pesquisador responsável pelo laboratório, o americano William O. Dawson, da Universidade da Flórida, lembra que Diva não tinha tanta experiência no trato com o vírus, o que a fez falhar em diversas tentativas.


Só que, naquele momento, uma característica pessoal fez o jogo virar: a persistência. “Nos primeiros anos, ela teve pouco sucesso. Mesmo assim, ela persistiu e teimosamente fez as coisas começarem a funcionar” recorda Dawson.


“(Ela) gerou dois clones infecciosos, e isso é uma conquista na qual vários laboratórios competentes ao redor do mundo falharam. No final, ela realizou feitos dos quais a maioria dos pesquisadores não é capaz.”


Para entender melhor a dimensão do trabalho, Juliano Ayres, do Fundecitrus, resume em uma conversa que teve com o pesquisador.


“O Dawson disse que trabalhou a vida inteira e só conseguiu uma linhagem do vírus, ela conseguiu duas. Para ele, isso é como ganhar na loteria duas vezes... fruto da ciência e, também, da sorte", diz Ayres.

E são esses dois clones infecciosos, ou linhagens de vírus, que o Fundecitrus hoje estuda para que, finalmente, o greening possa ser superado.


“Para descobrir uma cura, ou que a planta desenvolva resistência à doença. A grande vantagem é poder contar com essas ferramentas para se criar uma estratégia nova, diz Wulff, do Fundecitrus.


“Ela essencialmente participou e, em alguns casos, liderou os desenvolvimentos mais importantes relacionados a essas doenças (CVC e greening)” afirma o pesquisador espanhol Pedro Moreno.


“Infelizmente, ela não teve a oportunidade de testar a capacidade de seu vetor de proteger as árvores cítricas contra o HLB (greening) e, talvez, contra outras pragas ou doenças dos citrus.”


Exigente e reservada

Todos que falam sobre Diva lembram de uma mulher muito exigente consigo mesma e com os outros. Ela não era de desistir fácil. Esse persistência e gosto pelo trabalho é uma característica marcante para colegas e família.


Além disso, era vista como uma pessoa reservada e que não gostava de ostentar seus feitos, como conta o irmão mais velho de Diva, Geraldo Teixeira.


“A gente sabia que ela era apaixonada pelo que fazia, que era obstinada e ia a fundo. Ela brincava ‘vocês não vão entender mesmo o que eu faço’. Ela era muito discreta, nós ficamos sabemos de muita coisa do trabalho dela depois que morreu.”


Nascida em Araraquara em julho de 1966, Diva foi a única filha menina do casal Maria Edna Pierobon e Carlos Teixeira Filho. Foi a terceira de 4 irmãos e sempre foi muito apegada à família.


Além de ser muito caseira, o trabalho ocupava boa parte da vida. “A gente percebia que o foco dela não desligava. Tinha vezes que a gente estava em casa em um almoço de domingo e ela ia embora falando que precisava ir ao laboratório. Ela era assim e a gente compreendia.”


Nelson Wulff, seu parceiro de pesquisa e laboratório no Fundecitrus, lembra de um dia em que passaram dias no campo para conseguir realizar uma pesquisa sobre o greening.


“A Diva era muito focada. Teve um trabalho que fizemos juntos e que ficamos 3 dias coletando mais de 800 amostras no campo para entender como era a distribuição da doença (greening). Este é um dos trabalhos mais citados da carreira dela, foram 8 meses de estudos.”


“Se você dissesse que era quase impossível, ela não ia acreditar. Era respeitadíssima no mundo. Ela se foi muito nova, no auge da carreira. Era taxada exigente, durona... mas dava exemplo. Foi uma perda muito grande”, diz Juliano Ayres, gerente-geral do Fundecitrus.


Geraldo, irmão de Diva, conta que um tumor no cérebro foi o responsável pelo fim precoce de uma carreira tão intensa.


Após detectar o problema em janeiro, Diva passou por uma cirurgia no local no mês seguinte. Porém, não resistiu a uma hemorragia e morreu no dia 25 de fevereiro de 2019, aos 52 anos.


“Ela tinha um monte de sonhos, tava construindo a casa dela… Foi uma pessoa que fez história, a vida dela foi estudar. Acho que ela era meio ‘gênio’, ia a fundo e sempre teve muito sucesso”, completa Geraldo.

Diva do Carmo Teixeira deixou a mãe, Maria Edna, e três irmãos: Geraldo, Paulo e Carlos.


Fonte:Rikardy Tooge, G1

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